Helena

      Helena

              Helena tocava seu reflexo no espelho, via rugas, mas com a ponta de seus dedos sentia sua pele lisa. Aquele reflexo era seu, ela sabia, mas não o sentia assim. Se via idosa, mas se sentia uma menina.     

                Ela sabia que deveria ir embora, mas a entristecia deixar toda uma vida naquele lugar.

                Momentos bons, outros não tão bons, mas todos faziam parte de sua história.

                Ali cresceu, sonhou, passou por pesadelos, dançou, brincou, chorou até secarem as lágrimas, sofreu, riu até ter câimbras, criou filhos, perdeu maridos, viveu sozinha, viu netos crescerem e bisnetos brincarem, foi infeliz, foi muito feliz, cuidou da casa, trabalhou fora, cuidou de todos, as vezes esquecendo de cuidar de si mesma, mas, no final, se sentia realizada, mesmo que alguns sonhos tenham caído no esquecimento, tenham ficado guardados num compartimento bem secreto de seu coração para que ninguém, nem ela, tivesse acesso, num lugar que fosse impossível alcançar. Era como se querê-los fosse pecado, como se olhar para si significasse esquecer dos outros, como se pensar em si mesma fosse fazê-la menos mulher, a mulher que queriam que fosse, a mulher que ela nunca tinha sido.

                Mas agora era o momento de rever tudo, de resgatar velhas lembranças, limpar o porão de seu coração e o sótão de sua alma, sacudir a poeira, rever sentimentos, chorar velhas lágrimas, sorrir novos sorrisos. E as viagens, que nunca fizera, ficariam na história como lembranças do que não foi vivido, com paisagens e sensações inventadas, assim poderia acreditar que sua vida tinha sido completa e que alguns caminhos escolhidos não implicaram em grandes perdas. Perdas que talvez fossem impossíveis de superar.

                Percebeu que em cada escolha de sua vida, renúncias tácitas foram feitas, pequenos e profundos detalhes que ela havia guardado tão bem que nem ela mesma percebera, mas que, agora, já não adiantava chorá-los.

                Conformada ela empacotou o que era história, guardou as lembranças, os amores e tudo o que fazia parte dela e da sua longa caminhada pela vida.

                Jogou fora o supérfluo, as mágoas, os rancores. Nada disso mais lhe cabia, como a roupa guardada no armário por longos anos a ponto da vistosa seda virar um trapo puído.

                Estava pronta para partir, preparara minuciosamente sua mudança, mas não podia levar mais nada.

                Olhou-se uma última vez no espelho. Encerrava nele toda uma vida. E ela podia ver, então, aqueles sentimentos tão profundamente guardados, dançarem ao redor da imagem refletida, de mãos dadas aos ganhos de toda sua existência naquele lugar esquecido.

                E assim, sem mais nada dizer, sem nem um olhar de arrependimento, virou-se de costas para o espelho e afastou-se de todo o conhecido. Sseguiu… até volatizar-se.

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