Cinzas

Cinzas

Ana Paula Toledo Aygadoux

                        Separou sua roupa na véspera, como fazia todos os dias. Não havia muito o que escolher naquele armário monocromático. Assim era mais fácil e prático e ele se vestiria em tons de cinza, combinando com a cor da sua vida. Ele não se lembrava muito bem quando havia se descolorido, mas o fato era que assim se tornara invisível e isso lhe dava certa segurança.

                           Tomou seu café preto, olhou para a sala minimalista, limpa e fria. Com poucos passos, minuciosamente calculados, chegou à porta de entrada, assim fazia todos os dias.

                        Desceu as escadas do prédio, o cheiro de mofo penetrando-lhe as narinas, mas ele já não o sentia mais. Os corredores de paredes pálidas lhe diziam, diariamente, que ele deveria sair dali enquanto havia tempo, enquanto ainda havia vida. Mas ele já havia se entorpecido pelo cinza e nenhum esforço fazia para mudar a aliada monocromia. No entanto algo hoje estava diferente, ele sentia, e isso o deixava desconfortável.

                        Um silêncio ensurdecedor estava no ar e ele pensava se só ele o escutava, poderia ouvir o bater de asas de uma borboleta do outro lado do oceano. Uma angústia de um roxo quase negro lhe apertava o peito.

                        Andou como sempre fazia, com passos contados, o mesmo trajeto, as mesmas ruas sujas, cheias de gente transparente e vazias de significado. Desceu as escadas da estação verde, única cor destoante da paisagem. E, pela primeira vez, viu um faxineiro, com seu macacão cinza, varrendo o saguão. Absorto na surpresa, fixou-lhe o olhar, o outro retribuiu esboçando um sorriso vermelho que ameaçava invadir seu mundo. Por medo desviou os olhos daquilo que lhe tirava a invisibilidade voltando sua atenção ao nada, mas ainda teve tempo de ver aquela esperança morrer e o outro sumir em seu próprio abismo.

                        Na mesma plataforma de todos os dias, no mesmo horário, todo aquele barulho cotidiano, que normalmente azucrinava seus pensamentos vazios, estava longe, era hoje um barulho quase inaudível. E foi de repente. Ele, ali, parado na plataforma, não viu, só sentiu. Sentiu o amarelo da onda quente da explosão varrer seus sonhos, enterrando sua vida já morta. E, num segundo, imaginou as cores que não vivera, como se pudesse, naquele instante, aquarelar sua vida. Viu o filme do que poderia ter sido, do que nunca mais seria.

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