O Canteiro
Ana Paula Toledo Aygadoux
Miguel revolvia a terra seca com uma pá de jardineiro, dessas com cabo curto que mais parecem feitas para crianças brincarem na areia da praia. A terra oferecia certa resistência, mas a lâmina afiada e a força de Miguel aos poucos a dividia em torrões ressequidos que facilmente se esfarelavam com pequenos golpes.
Seus pensamentos iam longe, naquele trabalho repetitivo, quando a pá bateu em algo mais duro sob a superfície da terra quebradiça. Ele forçou o utensílio, mas algo impedia seu caminho. Acreditando ser uma pedra, retirou toda a areia da volta de seu obstáculo até encontrar um objeto branco. Removeu-o por completo do canteiro, limpando os pequenos pedaços de terra que teimavam em se apegar a ele. Olhou para o que tinha e, de imediato, largou aquilo no solo, limpando as mãos na camisa surrada e caindo para trás. Era um osso, muito grande para ser de um animal qualquer — nem um cachorro de grande porte poderia ser dono de tal peça.
Miguel levantou-se, ofegante, ainda limpando os restos de terra na roupa já suja, como quem deseja livrar-se com certa urgência de algo perigoso. O suor escorria por sua face, menos pelo esforço, mais pela descoberta. Andando em direção ao canteiro em que a mãe cavava enquanto cantarolava um trecho de alguma canção de sua mocidade, disse:
— Mãe, achei alguma coisa lá! — Estendeu a mão trêmula, apontando para a sua descoberta. A mãe ergueu-se de um pulo e virou-se, encontrando o olhar perdido e assustado do filho. Ele pôde ver as feições dela endurecerem. As bochechas, normalmente rosadas, deram lugar a uma palidez cadavérica. Ela, então, andou dois passos para trás e apoiou-se num velho mourão, para evitar cair, pois suas pernas bambearam e não eram mais capazes de sustentá-la. Sua respiração tornou-se curta.
Miguel correu para socorrê-la, envolvendo-a pela cintura, escorando seu corpo e esquecendo aquele pedaço de gente largado no canteiro.
Quase não a reconhecia como a pessoa alegre e dinâmica que o acompanhou diuturnamente pelos seus dezoito anos. Escutou um balbuciar de palavras:
— Ele, ele… — as palavras entalavam em sua garganta. — Ele me batia — conseguiu dizer entre os dentes num tom praticamente inaudível. — Eu tinha medo dele. — As lágrimas desciam, molhavam aquele rosto seco, marcavam com sulcos limpos a sujeira deixada pela terra. Lágrimas que lavavam qualquer culpa.
— Você… Meu pai? — perguntou, largando o corpo inerte da mãe que, novamente, se apoiou no mourão para não cair; suas pernas ainda pareciam ser feitas de argila molhada.
Ela respirou fundo, o mais fundo que pôde e, ao expirar, vomitou numa única frase tudo que estivera guardado por tanto tempo:
— Não enquanto ele não ameaçou matar você.
O silêncio disse tudo ao longo dos minutos durante os quais se entreolharam. Miguel, então, compreendeu o motivo daquela história inacabada do pai ter saído ao quintal e nunca mais ter sido visto.
Agachou-se novamente, cavou um buraco profundo, jogou seu pai lá dentro, cobriu tudo com terra e, rompendo o tácito pacto de silêncio, questionou:
— O que você quer plantar aqui, mãe?